© Luciana Molisani

_salas de leitura

Todas as atividades são GRATUITAS

Quando:

15.08 [qui], das 13h30 às 19h
16 a 18.08 [sex a dom], das 11h às 19h

Onde: Edifício Vera . Rua Álvares Penteado, 87 . São Paulo

Dúvidas:
info@festivalimaginaria.com.br

SALA 08 – 7º andar  

_Papel e chumbo – fotolivros e ditadura no Brasil

curadoria de Miguel Del Castillo

A memória coletiva de períodos ditatoriais costuma entrar na mira de governos antidemocráticos, que buscam manipulá-la ou simplesmente apagá-la. A arte, quando lida com o mesmo tema, não raro trilha o caminho inverso, resgatando fatos e expondo a violência de Estado. Esta exposição é composta por fotolivros que, de diferentes maneiras, abordam a ditadura cívico-militar brasileira, iniciada com o golpe de 1964 e só totalmente dissolvida em 1985, após um acordo (assinado em 1979) que garantiu ampla anistia a militares e apoiadores. Seus efeitos são sentidos até hoje e fazem do Brasil o país latino-americano que menos assimilou a história de seus anos de chumbo, com uma notória escassez de políticas de acesso à informação.

No primeiro grupo de livros expostos há trabalhos de cunho mais fotojornalístico e realizados durante a ditadura, ainda que alguns editados posteriormente. Dois deles, publicados no calor da hora, documentam importantes eventos ocorridos já próximos aos anos 1980 – a Greve do ABC e o histórico encontro da União Nacional de Estudantes (UNE) na Bahia – e se conformam como um misto de signo de esperança e denúncia à queima-roupa das violações de direitos. Já em 1988, nos primeiros anos sob uma democracia ainda frágil, publica-se um livro com fotos doadas anonimamente ao Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, acompanhadas de depoimentos de pessoas que viveram o ano de 1968, que marcou o drástico recrudescimento da repressão. Em uma edição mais contemporânea, com imagens sangradas e sobrepostas, a fotógrafa Rosa Gauditano compila fotografias que fez da atuação de mulheres nos movimentos sociais em São Paulo.

Um segundo conjunto de obras, feitas também ao longo dos anos ditatoriais, não exibe manifestações, batidas policiais ou locais de tortura; seus registros são de outra ordem. Bina Fonyat, por exemplo, aposta em retratar a mais tradicional festa brasileira, o carnaval de rua, mostrando como a folia era a um só tempo escape da repressão e deboche a ela. O fantástico que se vê nas fantasias dos foliões aparece também no seminal fotolivro de Boris Kossoy, que, ao construir pequenos contos fotográficos, ironiza de maneira refinada a falta de liberdade de expressão e o conservadorismo pudico hipócrita. A questão da repressão aos corpos, especialmente os femininos, está igualmente presente nos autorretratos de Gretta Sarfaty, que faz uma crítica à representação deles numa sociedade machista cujo avatar máximo era o próprio aparato repressor estatal.

Diversos artistas contemporâneos lidam com a ditadura a partir de arquivos, muitas vezes acrescidos de outros materiais, para reativar essa memória coletiva. A aura inquietante e tensa de fotos feitas pouco antes do golpe é percebida nas páginas do livro de Shirlene Linny e Julio Cesar Cardoso, que conta a história de um diplomata brasileiro perseguido e morto pelo regime para encobrir a corrupção por detrás da construção de uma hidrelétrica. O ano fatídico de 1968 é tema do zine de Rony Maltz e Carolina Cattan, que, como numa sequência de tweets, resgata imagens e textos de notícias dos dias próximos à promulgação do Ato Institucional n. 5 pelo governo militar. Diego Di Niglio compila histórias de pessoas atingidas pela repressão, e Gilvan Barreto se ocupa de um lugar – o ultraturístico arquipélago de Fernando de Noronha, que foi naquele momento cárcere de presos políticos – para fazer um salto ao Brasil de 2019, cujo presidente de então, Jair Bolsonaro, pouco tempo antes homenageara, do palanque do Congresso e em rede nacional, um torturador confesso.

Ao chegarmos ao Brasil de hoje, é impossível não lembrar que existe um braço da ditadura ainda atuante em solo nacional, uma instituição que continuou a existir com poucas mudanças e que é uma das mais mortíferas do tipo no mundo: a Polícia Militar. Em seu livro, Rogério Vieira retrata aqueles que mais sofrem com essa violência, isto é, jovens negros das periferias das cidades. Shinji Nagabe, por sua vez, olha para um futuro fictício, embora assustadoramente possível, imaginando uma distopia teocrático-totalitária em que o ramo fundamentalista do evangelicalismo tem grande parte.

Nas páginas desses títulos polifônicos, encontramos a iminência do golpe, a atuação da repressão, as lutas de resistência, os lugares indizíveis, o exílio, as dissidências ocultas, os efeitos da ausência dos desaparecidos, as continuidades e as sombras que se projetam. Entrecruzam-se imagem e memória, história e política, indivíduo e coletivo. Livros sobre esse tema nunca serão suficientes, e se fazem ainda mais necessários num país como o Brasil, em que o legado da Comissão Nacional da Verdade – órgão temporário criado apenas em 2011 para investigar os crimes cometidos pelo governo militar, e que durou apenas três anos –, ponta inicial de lucidez num mar de esquecimento, se viu recentemente ameaçado por um governo federal que celebrava a ditadura e buscava reescrever com cinismo a história, apagando uma memória que mal começávamos a recuperar.

Miguel Del Castillo
Escritor, tradutor, editor e curador. Nasceu no Rio de Janeiro e vive em São Paulo. É autor dos livros Restinga (contos, 2015) e Cancún (romance, 2019), ambos publicados pela Companhia das Letras. Foi escolhido como um dos vinte melhores jovens escritores brasileiros pela revista Granta em 2012. Atua como coordenador da Biblioteca de Fotografia do Instituto Moreira Salles, tendo sido também editor da Cosac Naify e do site da revista ZUM. Manteve por um ano uma coluna sobre fotolivros no site da livraria Megafauna e é mestrando em Literatura Comparada na Universidade de São Paulo (USP).

Instituto Moreira Salles
Uma instituição cultural que existe desde 1992 e tem sede em três cidades brasileiras: São Paulo, Rio de Janeiro e Poços de Caldas. Tem sob sua guarda um importante acervo dividido em quatro áreas: Fotografia, Música, Iconografia e Literatura. O IMS promove exposições de fotografia e artes visuais, além de mostras de cinema, apresentações musicais e outros eventos. Sua Biblioteca de Fotografia, especializada em livros desse campo, é uma iniciativa única no Brasil e está localizada no centro cultural de São Paulo, onde promove exposições bibliográficas, cursos e palestras, e possui um acervo que abrange desde catálogos e revistas de importância histórica até fotolivros e zines recém-saídos da gráfica.

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