O fotolivro e as histórias da arte

O fotolivro e as histórias da arte

Rever, revisar, reescrever, reestruturar, recontar, reler são alguns dos verbos que abrangem o exercício de reflexão sobre a chamada “história tradicional da arte”, pauta que, antes tarde do que nunca, tornou-se urgente no universo artístico e fora dele. São cada vez mais potentes as iniciativas de artistas, acadêmicos, curadores e outros profissionais engajados em promover o reconhecimento das “histórias da arte” no plural, tendo como norte o pensamento decolonial. Como qualquer outra linguagem, os livros de artista, os fotolivros e a fotografia – também espaços de criação de narrativas, mesmo que primordialmente visuais – são suportes e gatilhos para reconhecer que a narrativa parcial criada a partir do ponto de vista de um único grupo pode e deve ser substituída pela coexistência de múltiplos discursos.

Rever, revisar, reescrever, reestruturar, recontar, reler são também os verbos essenciais que permeiam o processo de produção de um fotolivro e as práticas de Daniela Moura, Daniele Queiroz e Marina Feldhues, participantes da primeira edição do festival IMAGINÁRIA_. Como artistas que lidam primordialmente com a fotografia e pesquisadoras, elas têm em comum o incômodo causado pela histórica colonização do saber, o amor pelos livros, sua materialidade e o que eles podem conter, e o olhar crítico sobre a imagem.

Elas também partem do pressuposto de que a discussão horizontal é o primeiro passo para decolonizar o pensamento sobre essas linguagens. É nesse sentido que Daniele Queiroz e Marina Feldhues comandam, respectivamente, os grupos semestrais de discussão A História é Outra e Narrativas Anticoloniais, dos quais Daniela Moura participa ativamente. Fundado em março de 2020, A História é Outra (@ahistoriaeoutra) promove encontros semanais on-line que partem da produção de mulheres no campo da imagem para “pensar e desenhar outras trilhas do olhar sobre as produções artísticas, inclusive as nossas”. O grupo de estudos Narrativas Anticoloniais (@narrativasanticoloniais) faz leituras atentas “a escritos de teóricos e professores que procuram pensar a realidade do planeta a partir da zona do não ser”. Elas garantem que é necessário construir ambientes em que os participantes se sintam confortáveis para discutir, experimentar e errar.

 


(Fonte: Instagram)

(Fonte: Instagram)

A paulistana Daniele Queiroz (@_danielequeiroz_) é também curadora assistente de Fotografia Contemporânea do Instituto Moreira Salles e cofundadora do Lombada (@_lombada), que trata da edição e publicação de fotolivros de forma coletiva. As maratonas de edição promovidas pelo grupo privilegiam o processo de criação e dão espaço para a incerteza, a confusão, a incoerência. “A horizontalidade dos processos que envolvem a produção de um fotolivro tem muito a ver com decolonizar os saberes”, conta Daniele, que vai contra a dinâmica tradicional de encontros em que o especialista ou professor analisa trabalhos e aponta os melhores caminhos a serem tomados.

A hierarquização muito comum que categoriza e separa fotografia de arte, arte de artesanato, livros de artista dos zines também é rigorosamente questionada pela artista e curadora. “A partir do momento em que você hierarquiza um fotolivro e um zine, você também categoriza quem pode fazer um ou outro”, diz Daniele acerca do pensamento errôneo de que, porque um fotolivro pode chegar a custar o preço de um carro, ele é melhor do que um fotozine, que pode ser feito em casa.

“Tenho questionado muito a ideia de passar anos trabalhando em um mesmo livro, precisando maturar para estar perfeito para publicação. Acho que temos que nos considerar artesãos do nosso ofício. O que vale mesmo é o processo, e a liberdade do fazer”, acrescenta.

 


Imagens ilustrativas dos textos de Marina Feldhues para a BDLF
(Fonte: Instagram)

 

Para Marina Feldhues (@marinafeldhues) o termo “decolonial” é novo e o risco de ser capturado como modismo é muito grande. A luta, porém, existe há muito tempo. “É muito importante entendermos que o que estamos fazendo não é novidade. Por fim, caiu a ficha de que o mundo é estruturado dessa forma. Mas o processo de decolonização é interno, está na nossa mente, molda como olhamos o mundo. É um processo de uma vida inteira, de gerações.” A fotógrafa, artista visual e professora investiga no doutorado em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco o trabalho de artistas visuais que pregam a fotografia de arquivo e as usam em processos simbólicos de emancipação. Nesse sentido, ela vem revendo a história da fotografia desde o século XIX para compreender e analisar trabalhos contemporâneos como o da artista Rosana Paulino. E são esses revisionismos históricos que ela partilha no grupo de estudos gratuito Narrativas Anticoloniais e na Base de Dados de Livros de Fotografia, para o qual ela contribui com diversos artigos.

 


Catálogo, de Marina Feldhues

Após ter pesquisado a fundo as categorias e características dos fotolivros para a dissertação da pós-graduação, ela colocou a mão na massa para produzir o livro Catálogo e ter a consciência corporal do que significa lançar uma publicação do tipo. Esses livros são, para ela, espaços importantes de circulação de discursos dissonantes, especialmente os fotozines, que podem ser feitos de forma caseira.

“Muito mais importante do que fazer um livrão perfeito é produzir um livro com o que você tem na mão para colocar as suas ideias no mundo. E o fotozine é uma excelente oportunidade para furar barreiras, entrar pelas brechas e fazer com que discursos circulem”.

 

Daniela Moura (@daniela.fmoura) sempre viu a fotografia como ferramenta política e como construção de um imaginário, mas foi em discussões fora do ambiente formal da arte que ela pôde enriquecer seu repertório como artista e pesquisadora acerca dessas questões. “Estamos sempre lutando contra as grandes narrativas e tentando construir a nossa própria. Mas isso eu encontrei fora dos espaços institucionais, em grupos de discussão em que se reconhece o processo do artista. Se não tiverem pessoas pensando nesses outros formatos e questionando as categorias estabelecidas, as hierarquizações, acabamos reproduzindo esses modelos”, explica.

 


Imagem ilustrativa do texto de
Daniela Moura para a BDLF

Daniela faz um importante trabalho na Base de Dados de Livros de Fotografia, contribuindo para o mapeamento dos livros de fotografia no Brasil entre 2010 e 2020. A partir desta pesquisa, ela vem questionando a representatividade feminina no universo dessas publicações, mostrando dados alarmantes quando se compara o número de livros publicados por homens e por mulheres, como ela fez no artigo “Memória e Visibilidade das Mulheres nos Livros de Fotografia”.

“A importância da presença feminina na autoria de livros fotográficos não se refere apenas à representatividade circunstancial da atuação das mulheres na produção das imagens, mas também sobre a possibilidade de documentação, circulação e inscrição destas produções fotográficas na própria história da fotografia”, escreve.

Em comum, elas também têm a vontade de não se rotularem como “fotógrafas especialistas em outras fotógrafas mulheres”, já que são mais categorizações que também contribuem para a fetichização e a perpetuação do pensamento verticalizado e colonial. “Sou uma artista visual, e não fotógrafa, e trabalho com imagens. Assim, defendo que fotografia é arte e não algo separado dela”, afirma Daniele Queiroz. Para o que Daniela Moura acrescenta: “Meu trabalho não é em busca de defender uma voz feminina, mas reivindicar a sua existência a partir de lugares de coletividade”.

Rever, revisar, reescrever, reestruturar, recontar, reler. Em comum, estas três artistas e pesquisadoras também têm a crença de que o feminismo e o pensamento decolonial não têm apenas a ver com resgatar produções esquecidas, mas reescrever as histórias da fotografia. Mulheres, negros e outros grupos são quase como gatilhos para repensar relações de poder, lugares de fala e tomadas de discurso. E o fotolivro, como lugar da contradição e do conflito, permeado por narrativas visuais, e que permite um processo horizontal de produção e edição, pode ser espaço potente para esta reconstrução.

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jornalista de arte e fundadora do Bigorna (www.bigornaart.com), plataforma didática de arte contemporânea. Nascida em São Paulo, tem graduação em Jornalismo pelo Mackenzie, e História pela PUC-SP. Vive em Lisboa, onde é mestranda em Culture Studies na Universidade Católica, e colabora com conteúdo sobre artes visuais para veículos e projetos do Brasil e de Portugal. (@bigorna_art).

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