Potencial infinito de experimentação e imaginação
“Um livro de literatura nos oferece o texto e aí construímos imagens mentalmente. Um fotolivro funciona ao contrário: nós elaboramos as narrativas a partir das imagens que o livro nos oferece”, conta Luciana Molisani, que, com o inseparável José Fujocka, vem construindo uma atuação potente no mercado editorial brasileiro. “Trabalhávamos há quase vinte anos nesse meio, mas só viemos perceber a produção de livros de artista recentemente, era algo incipiente no contexto editorial brasileiro. Depois que passamos a pesquisar, conhecer e nos conectar, um novo mundo se abriu para nós”, conta Fujocka. O tal “novo mundo” da dupla passou a ter nome e local em 2018 com a inauguração da Lovely House, a livraria na Galeria Ouro Fino, em plena rua Augusta, em São Paulo, que edita, publica e comercializa livros de artista. Além de comandar um dos únicos espaços do tipo no Brasil, Luciana e Fujocka também encabeçam a organização e curadoria do IMAGINÁRIA_, o primeiro festival brasileiro totalmente dedicado ao fotolivro – os livros de artista que usam a fotografia como elemento principal e que têm um potencial infinito de introspecção e imaginação.
José Fujocka e Luciana Molisani, curadores do festival e editores da Lovely House
O interesse pontual de artistas por fotolivros no Brasil existe pelo menos desde a metade século XX, mas o panteão da fotografia brasileira sempre deixou para segundo plano essa produção. Foi só na última década que a discussão sobre o fotolivro como linguagem se disseminou. A IMAGINÁRIA_ vem destacar essa criação jovem e nacional, com o intuito de contribuir para o mapeamento de artistas, acadêmicos, curadores, críticos, editores e outros profissionais que se dedicam aos fotolivros, fomentar o debate sobre a linguagem, construir uma comunidade em torno do tema e atrair olhares estrangeiros. A produção no Brasil é acanhada, como também são poucos os espaços no cenário da arte que discutem o fotolivro como objeto de arte, como um processo, e não como um ensaio fotográfico ou um catálogo tradicional. E a IMAGINÁRIA_ é um pontapé para o amadurecimento deste debate.
“O fotolivro é um dos espaços onde a fotografia é mais bem-sucedida em construir narrativas propriamente ditas”, defende Daniela Moura, cocuradora do Ciclo de Conversas, que traz 27 convidados para as mesas-redondas on-line do festival. Se estamos muito acostumados com imagens rápidas, facilmente legíveis, fragmentadas, o fotolivro desafia nossa interpretação: oferece menos informações do que uma fotografia que representa algo, compartilha outros dados e nuances e isso possibilita a criação de narrativas complexas e experimentais. “A flexibilidade do formato desse tipo de publicação também encanta: você pode considerar fotolivro desde um zine impresso em casa em papel jornal até o livro feito em fine-art com todas as técnicas editoriais e gráficas”, acrescenta. O Ciclo de Conversas dá espaço para figuras como Paulo Silveira, um dos pesquisadores do assunto mais importantes no Brasil, Horácio Fernandez, um dos mais renomados no mundo, e Julieta Escardó, curadora de uma biblioteca de fotolivros latino-americanos em Buenos Aires. Sim, há bibliotecas inteiras dedicadas a essas publicações espalhadas por aí, assim como colecionadores que só têm olhos para fotolivros e pesquisadores que se dedicam a listar as melhores publicações do tipo criadas a cada ano em todo o mundo.
A divulgação no boca a boca é a mais comum para os fotolivros, já que a circulação dessas publicações não passa pelas livrarias convencionais e acaba ficando muito restrita à comunicação que o próprio autor ou autora fazem de suas criações. Assim, a feira promovida pela IMAGINÁRIA_ irá reunir comunidades de cidades como Rio de Janeiro, Recife, Salvador, Belém e Belo Horizonte e outras nove cidades do Brasil para promover a sua comercialização e circulação.
Nesse sentindo, a edição inaugural do festival, que como todos os outros eventos no mundo acabou sendo digital, veio para facilitar esse encontro, mesmo que os fotolivros sejam essencialmente físicos. O toque e a relação pessoal do leitor com a publicação são primordiais para a experiência que qualquer livro de artista propõe.
“Percebemos que a versão digital desses livros não impede que o leitor adquira o objeto físico, na verdade ela acaba estimulando a compra do livro em si”, conta Fujocka. Durante o confinamento, as galerias fecham, os museus fecham, mas os livros continuam a circular. E aí a experiência íntima e quase meditativa que o leitor tem com aquele pequeno objeto de arte continua a acontecer dentro de casa.
Estimular a produção de fotolivros – ou pelo menos impulsionar a sua concepção, já que, por vezes, a confecção em si pode custar bem caro – também é prioridade da IMAGINÁRIA_. Além de premiar quem está começando a carreira (os fotozines, com seu formato mais caseiro e artesanal, serão contemplados na premiação), o festival também terá uma maratona de edição. Comandada pelo grupo Lombada, a oficina será um espaço de edição coletiva do material de dez autores selecionados a partir de uma chamada aberta. Qualquer pessoa é bem-vinda nesse workshop para coeditar os trabalhos. A ideia do fotolivro não ser um desdobramento de um trabalho de fotografia, mas um fim em si, está apenas começando a ser disseminada, e essa maratona tem como objetivo apresentar e experimentar algumas possibilidades, caminhos e formatos. Luciana conclui:
“Existe muito espaço para o crescimento e a consolidação deste mercado no Brasil e na América Latina. E nós vamos começar reconhecendo a produção já existente e potente daqui. Vamos celebrá-la. Por isso, este festival é uma grande festa”.