O sistema fotolivro_2

O sistema fotolivro_2

“O interesse crescente pelos livros de fotografia não é um acontecimento efêmero, porque há de fato qualidade no que se produz. Exatamente por isso, essa experiência merece ultrapassar o território demasiadamente demarcado que fomentou sua efervescência.” Ronaldo Entler[1]

os editores em um mercado fragmentado

O sistema de produção editorial tem sofrido profundas mudanças nos últimos anos. Embora a impressão em offset ainda seja largamente utilizada, a etapa de desenvolvimento do livro, a sua maquete ou boneco, é predominantemente feita em impressão digital, assim como toda a produção independente de baixa tiragem, formando assim um sistema híbrido. Mudam-se as técnicas, mas os desafios de se obter uma boa impressão continuam os mesmos. Os novos modos de editar, produzir e distribuir livros fotográficos foram os fatores responsáveis pela ampliação dos títulos publicados e a consequente descentralização de sua produção, mas que não correspondem necessariamente em escala. Como remarcou o editor alemão Markus Hartmann[1] falando especificamente sobre os fotolivros: estamos em uma época contraditória em que, embora mais livros sejam publicados do que nunca, quase ninguém consegue ganhar a vida com eles.

O mercado do fotolivro é muito particular, é majoritariamente constituído por um tipo de “venda polarizada”. Para Ramón Reverté[2], da editora espanhola RM, especializada em livros fotográficos, há livros que se vendem muito bem e outros quase nada. Segundo sua estimativa, são publicados, por ano, em torno de dois mil fotolivros, sendo a metade produzida pelas principais editoras do segmento, e o restante pulverizado entre as pequenas ou autoeditados. O fotolivro possibilitou a ascensão de um novo segmento que, por sua pequena tiragem, interessa também ao colecionador. Esse é o nicho que mais cresce, enquanto as grandes tiragens de livros de arte decrescem na mesma velocidade, o que afeta inclusive as grandes editoras, cuja estrutura não consegue competir com as menores, especializadas nesse tipo de livro autoral e que são muito mais ágeis. Esse é o caso da editora inglesa Thames & Hudson, que tem focado apenas em nomes mais conhecidos sem se aventurar no segmento das pequenas tiragens autorais.

É claro que muito antes desse recente interesse por fotolivros, editores independentes formaram uma tradição e participaram de maneira pessoal e decisiva na construção de alguns dos livros decisivos para a história, não só das publicações, mas da própria fotografia. Robert Delpire é um desses casos emblemáticos. Ele lançou na França a primeira edição de The Americans (1958), de Robert Frank. Hoje um clássico, o livro não encontrou em um primeiro momento editor nos Estados Unidos. Delpire publicou ainda Exiles, de Josef Koudelka, e foi também o responsável pela coleção Photo Poche, uma publicação que tornou acessível a publicação fotográfica, ainda hoje um enorme sucesso. Mesmo após a morte do seu fundador, a Delpire & Co segue atuando e é um dos parceiros da feira Paris Photo para o prêmio Photobook Awards.

Exiles, de Josef Koudelka

A editora alemã Steidl, por sua vez, foi uma das primeiras a se dedicar, ainda em 1994, ao fotolivro e a construir um dos melhores catálogos nessa área, depois de ter se estabelecido por mais de vinte anos como editora de arte e literatura. Atualmente, publica a obra de Robert Frank, Robert Adams, Lewis Baltz, Ed Ruscha, entre outros. Mesmo para uma editora referência no mundo todo e com um catálogo invejável, ela consegue equilibrar as contas por ser também uma gráfica, e das melhores, o que lhe permite economizar nas suas próprias impressões e ainda ter retorno com as de outras editoras. As margens nesse segmento são mínimas, como sugere seu fundador Gerhard Steidl: Uma editora ou perde dinheiro e vai à falência ou obtém entre dois e cinco por cento de lucro […] ser também um impressor economiza muito dinheiro[1].

Partida, Robert Flank, Steild, 2014

Michael Mack trabalhou na Steidl desde 1994, construindo seu catálogo de fotolivros, e em 2010 fundou a sua própria editora, com os selos MACK book e MAPP editions, apenas para a versão digital dos livros, os e-books, ambas baseados em Londres. Nessa época, que coincide com o lançamento do iPad, esse era o futuro óbvio para os livros: se desmaterializarem. Dez anos depois, apenas o modelo impresso sobreviveu. Ele levanta uma hipótese para isso:

Percebi que onde nosso mercado mais se expandia era entre os jovens estudantes, criados na era digital. Eles são os que, já que seu mundo é completamente digital, amam o fotolivro físico, situação análoga ao retorno dos discos de vinil[2].

 

Hoje ele edita autores importantes como Paul Graham e Thomas Demand, além de promover um concurso para a publicação do primeiro livro de um artista. Foi por meio deste prêmio que Sofia Borges publicou The Swamp em 2016.

The Swamp, Sofia Borges, MACK Books, 2016.

Na França, país onde a edição de livros é uma tradição e tem peso econômico importante, não raro com suporte público, foi criada em 2016 a associação France Photobook, que tem por objetivo tornar conhecida a produção contemporânea de fotolivros franceses. Ela reúne 22 editoras independentes. Para se associar, basta estar baseada na França e publicar ao menos três livros por ano. Ela produz uma Feira reunindo seus associados, além de publicar em seu site conteúdos ligados à categoria, como entrevistas com autores, curadores e editores, um modelo para unir forças em um segmento tão pulverizado.

Um caso à parte é o Japão, país onde a produção de livros e revistas de fotografia sempre teve prevalência sobre as tiragens fine art. Segundo o pesquisador japonês Ryuichi Kaneko, para os fotógrafos do pós-guerra, como Daido Moriyama e Eikoh Hosoe, o livro de fotografia era considerado a forma mais elevada de expressão fotográfica, segundo esses autores não poderíamos atingir uma forma de expressão plena e inteira antes de publicar um livro[3]. Essa situação mudou no início dos anos 1980, à medida que uma nova geração tomava conhecimento da consolidação da fotografia no sistema da arte ocidental, com suas exposições e tiragens controladas. Foi somente nos últimos dez anos, a partir do crescente entusiasmo internacional pelas publicações japonesas, que se retomou o interesse pelo livro como veículo preferencial da fotografia, continuando uma tradição.

Terayama Daido, Daido Moriyama e Shuji Terayama, Match & Co 2015

Otoko to Onna (Man and Woman), Eikoh Hosoe, Camera Art Inc.1961

No Brasil, talvez possamos traçar a genealogia recente da implantação de um sistema editorial do fotolivro a partir do surgimento, na última década, das editoras dedicadas exclusivamente a esse segmento. É, evidentemente, uma história ainda por ser escrita, mas pode ser um ponto de partida para analisar essa categoria responsável por grande parte da produção dos fotolivros brasileiros contemporâneos e que, como podemos perceber, é de estruturação muito recente.

Embora, antes de 2010, as editoras Tempo d’Imagem (1995) e Origem (2001) já atuassem no mercado do livro fotográfico, foi a partir da última década que elas investiram em fotolivros autorais e de baixa tiragem, caminho em grande medida aberto pela Madalena, editora e primeira loja física dedicada ao fotolivro, aberta em 2013, e pelas menores PINGADO PRÉS (2014) e Vibrant (2014). Se a Madalena foi a única editora brasileira a participar do setor de publicações da Feira Paris Photo, as últimas foram criadas no ambiente favorável à distribuição independente das feiras que surgiram nessa década, caso da Plana, Tijuana e NY Art Book Fair, entre outras.

A Editora Olhavê, após suas primeiras publicações teóricas, iniciou seu catálogo de fotolivros em 2015. Na sequência vieram a Fotô Editorial (2016), também com títulos teóricos e de ensaios fotográficos e, em Salvador, a Gris (2016), que começou a publicar seus zines em um momento em que o modo de produção e de circulação se democratizava. Se o mercado consumidor ainda se concentrava no Sudeste, a distribuição também podia ser feita de forma direta por meio das diversas feiras independentes. No final da década, ao circuito de feiras une-se as redes sociais, potencializando a circulação de informações e de produtos. Nasce, assim, a Lovely House em 2018, uma casa de livros híbrida: física, on-line e itinerante nas diferentes feiras e festivais.

Em 2018, a editora carioca {Lp}press lançou seus 52 fotozines, editados e produzidos de forma autônoma, que permitem escolha de papéis diversos e ajuste da produção de acordo com a demanda. No mesmo ano, a Lovely House inaugurou seu catálogo de fotolivros. Em 2020, saem de cena as feiras presenciais e todo o sistema de circulação passa pelo virtual; surgem publicações, como a Artisan Raw Books, Sô edições e Selo Turvo, completamente articuladas nesse ambiente, mas produzindo obras impressas, já que, como nunca, impressos importam!

Moscouzinho, Gilvan Barreto, Tempo d’Imagem, 2012

Ela vai ficar, Sabrina Pestana, Lovely House, 2018

Beijo, {Lp}press, 2018

Como está o Início depois do fim?, Jordi Burch, Tinta da China e Vibrant Editora, 2017

Vertentes, André Conti, Olhavê, 2016

Serra da Ermida 357, Daniela de Moraes, Fotô Editorial, 2016

Multidão, Lucas Moreira, Editora Gris, 2019

O sistema do fotolivro comporta inclusive o modelo do autor/editor, em que a produção autoral se mistura com as funções de editar seu próprio livro ou de outros. É o caso do fotógrafo e editor Marcelo Greco, que participou da Schoeler editions e hoje, por meio da Rios Greco, viabiliza diferentes projetos de livros autorais. O mesmo pode se dizer do fotógrafo e editor peruano Musuk Nolte e sua editora KWY, projeto editorial independente e colaborativo, que desde 2013 já lançou mais de vinte títulos, de diferentes autores latino-americanos. Photogramas, por sua vez, é um projeto editorial argentino criado pelo fotógrafo Pablo Cabado e por Gastón Deleau, diretor de FOLA (Buenos Aires), espaço dedicado à fotografia. Com edições primorosas, publicam tanto os projetos relacionados às suas exposições quanto obras mais autorias.

Abrigo, Marcelo Greco, Rios.Greco e Editora Origem, 2020

Sombra de Isla, Musuk Nolte, KWY, 2019

Psyche, Photogramas, 2017

O circuito de feiras e festivais

Se grande parte dessa produção e circulação se faz a partir do ambiente virtual, é no corpo a corpo dos festivais de fotografia e feiras de publicações que o livro circula, ambiente hoje transferido para as plataformas on-line, mas que guardam o mesmo espírito de reunir os diversos elos da cadeia do fotolivro: editores, autores e aficionados.

Les Rencontres d’Arles, na França, considerado o principal festival internacional de fotografia tem suas duas feiras: a oficial Cosmos, que começou em 2009 com cinco editores independentes e hoje reúne cerca de noventa, e Temple, que recebe em torno de sessenta deles, além de todos os eventos que lhe são associados, como lançamentos e conversas. Temos ainda a Feira do Livro de Fotografia de Lisboa, para citar apenas um outro exemplo europeu. Na América Latina, temos o Festival de Libros de Fotos de Autor – FELIFA, na Argentina, entre outros. Se no Brasil os fotolivros e fotozines sempre tiveram espaço nas feiras de publicações independentes (Plana, Tijuana e Miolos) ou ainda nos festivais de fotografia, atualmente eles já contam com eventos específicos, caso da Feira Urca no Rio de Janeiro e da Zum, do IMS, em São Paulo, e agora a Feira Livro, um dos eixos curatoriais da IMAGINÁRIA_.


[1] ENTLER, Ronaldo, “Sobre fantasmas e nomenclaturas [parte 3]: fotolivros” publicado na revista eletrônica

Icônica em 09/06/2015: http://www.iconica.com.br/site/sobre-fantasmas-e-nomenclaturas-parte-3-fotolivros. Consultada em 10/03/2021

[2] Markus Hartmann, foi por longo tempo editor da prestigiosa editora alemã de livros de arte e fotografia Hatje Cantz, o artigo “What works in the photobook world today and what no longer works?” foi publicado no blog  do museu suíço Fotomuseum Winterthur em 23 set. 2014: https://www.fotomuseum.ch/en/2014/09/23/what-works-in-the-photo-book-world-today-and-what-no-longer-works/

[3] Citado por Moritz Neumuller, “Al pie de la letra”, no catálogo da exposição Fenómeno Fotolibro, RM editorial.

[4] Gerhard Steidl em reportagem de Liz Jobey no Financial Times, 27 fev. 2015,

https://www.ft.com/content/be1fd978-bceb-11e4-a917-00144feab7de, consultado em 3 fev. 2021 (minha tradução).

[5] Ibid.

[6] Ryuichi Kaneko é um dos maiores estudiosos e colecionadores de publicações fotográficas japonesas. Em entrevista a Marc Feustel à revista The Eyes, Paris, n. 7, 2017, p.129.


Crédito das fotos:
Exiles –  Aperture Foundation
Otoko to Onna –  ICP Library
Moscouzinho – Base de Dados de Livros de Fotografia
Beijo – ({Lp}press)
Abrigo, Editora Origem
Ela vai ficar
– Jose Fujocka/Lovely House
Multidão – Jose Fujocka/Lovely House
Demais imagens – Eder Ribeiro
Written by -

curador e editor. Mestre em Arquitetura (École National Superièure d’Architecture Paris Malaquais) e Arte Contemporânea/Fotografia (Université Paris 8). Fundou a alter edições, editora independente especializada em livros fotográficos. Atualmente coordena o Grupo de Estudos em Narrativas Visuais na Casa Contemporânea (São Paulo).

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