Dois olhares afiados sobre o fotolivro brasileiro

Dois olhares afiados sobre o fotolivro brasileiro

É natural a ideia de que um livro é um meio de acesso para outras coisas. Um mediador repleto de significantes que permite a interlocução com outros universos.

Houve um momento em que se previu o fim dos livros físicos, mas a suposição apocalíptica logo foi desconsiderada quando a discussão sobre a experiência do corpo com o livro-objeto foi se tornando cada vez mais evidente. Vide os nossos tempos pandêmicos, quando um livro digital muitas vezes só faz aumentar a fadiga visual e mental e quando, ao final do dia, prazeroso mesmo é trocar a tela do computador por folhas, e a cadeira de escritório por um sofá confortável. Para muitos leitores, não é só o conteúdo que importa. E assim, o livro digital não dá conta da experiência de ler.

Seguindo esse pensamento, percebemos que não, o livro não é um apenas um portador de informação. Ele sozinho pode ser um fim, um fenômeno cultural, um objeto repleto de especificidades. É essa a premissa dos livros de artista e a compreensão que pesquisadoras como Ana Paula Vitorio e Daniela Bracchi têm dos seus objetos de pesquisa, os fotolivros. Elas são algumas das poucas acadêmicas brasileiras a se dedicar ao estudo das publicações que relacionam livro e fotografia como duas linguagens em um único objeto e foram convidadas para apresentar seus olhares afiados e frescos no Festival IMAGINÁRIA_.

De Juiz de Fora à Savana africana

Foi no Instituto Moreira Salles, em 2013, que Ana Paula Vitorio ouviu falar pela primeira vez dos fotolivros. A exposição Fotolivros latino-americanos, curada pelo professor e historiador espanhol Horacio Fernández – autor do consagrado livro homônimo e que também fará parte do Ciclo de Conversas da IMAGINÁRIA_ – reunia cinquenta publicações históricas produzidas desde 1920. Como mestranda em comunicação na Universidade Federal de Juiz de Fora, em Minas Gerais, Ana Paula vinha estudando fotografia, mas o livro fotográfico estava fora do radar. “Nesta exposição, pirei na ideia de que muitos dos livros não podiam ser tocados, alguns estavam na parede, outros eram mediados por vídeo. E eu senti tanta falta de tocar na superfície da imagem fotográfica. Me surgiram várias questões que me instigaram muito: o que faz com que a fotografia se comporte de uma ou outra forma? O que faz a gente olhar para um livro de maneira mais demorada, para o livro em si, como objeto e não o que ele pode conter? É aí que comecei a pesquisar”. Isso aconteceu no mesmo momento em que se discutia o tal do fim do livro físico, o que colocava ainda mais lenha na fogueira para a discussão que Ana Paula passou a investigar.

Silent Book (CosacNaify, 1997), de Miguel Rio Branco, e Sí por Cuba (CosacNaify, 2005), de Tatiana Altberg, foram os fotolivros selecionados por ela como estudos de caso da dissertação de mestrado, principalmente por quase não conterem textos escritos.


Silent Book (CosacNaify, 1997), de Miguel Rio Branco

Sí por Cuba (CosacNaify, 2005), de Tatiana Altberg

“Estamos acostumados com a fotografia acompanhada por um texto, vemos isso na galeria, nos jornais. E o que eu queria identificar era o que acontece quando apenas a imagem existe. E os processos de produção de sentido quando há uma sequência de imagens, que são relacionadas de determinada forma em um projeto gráfico”, afirma.

Mais tarde, na pesquisa de doutorado na PUC-Rio, Ana Paula defendeu a hipótese de que fotolivros são fundamentalmente processos de montagem. Ao pesquisar a produção dessas publicações no Brasil, ela concluiu que foi principalmente entre as décadas de 1970 e 90 que os mais importantes livros fotográficos foram publicados: “Eles inauguraram uma série de modos de conceber fotografias e formas de olhar para o livro como objeto, como portador de significado. O que aconteceu depois, na virada do século, foi uma profusão da produção dos livros fotográficos no Brasil, que foram herdeiros dessas experimentações”, defende. Ela cita publicações como Viagem pelo fantástico, de Boris Kossoy (Kosmos, 1971), Amazônia, de Claudia Andujar e George Love (Praxis, 1978), São Paulo anotações, de George Love (Eletropaulo, 1982) e, novamente, o Silent Book, de Miguel Rio Branco, como casos exemplares de montagem como princípio criativo dos livros fotográficos.

Viagem pelo fantástico, de Boris Kossoy (Kosmos, 1971)
Amazônia, de Claudia Andujar e George Love (Praxis, 1978)
São Paulo anotações, de George Love (Eletropaulo, 1982)

A sua pesquisa continua em um pós-doc na University of the Free State, na África do Sul – “Era para eu já estar lá na sanava, mas fiquei presa por conta da pandemia!”, brinca –, onde pretende continuar estudando publicações que têm pouca escrita, mas fazem exercícios de transmidialidade na relação entre a fotografia e a pintura, a impressão do próprio filme fotográfico, o poema etc. Hoje, aos 36 anos, ela conta que muita coisa mudou desde quando se aventurou nesse universo, principalmente o reconhecimento do livro-objeto como um portador de significados. “Nos dez últimos anos, vimos crescer bastante o número de feiras, de editoras independentes, de formas alternativas de se pensar o livro. Fora do Brasil, existe mais crítica especializada e a pesquisa acadêmica está mais avançada, mas em termos de produção, a brasileira é comparável a de vários outros países do mundo”.

“Minicenário” pernambucano

Daniela Bracchi não tem dúvidas de que o campo da arte impressa no Brasil é bem constituído. Para ela, o que falta é educação estética acerca do fotolivro. A pesquisadora e professora de 39 anos vive no Recife e dá aulas a 150 quilômetros dali, no campus Agreste da Universidade de Pernambuco em Caruaru, e faz questão de começar suas aulas na graduação explicando que o fotolivro deve ser entendido como um discurso. “Quando falo sobre a importância da materialidade, apresento diferentes papéis e as possibilidades de formato dessas publicações, isso encanta, e muitos alunos passam a experimentar”. Ela conta que Pernambuco é o estado do nordeste brasileiro com maior circulação de fotolivros (“Temos um minicenário em ascensão!”), já que há um edital do governo, o Funcultura, com uma linha voltada especialmente para o fomento da produção de publicações fotográficas.

Com mestrado em semiótica na PUC-SP, Daniela sempre se interessou em estudar a plástica da foto, sua a cor e textura. Mas como entende a fotografia como uma linguagem, preferiu transformar o estudo de fotografias isoladas em uma investigação sobre as narrativas que o fotolivro pode propor, como um suporte rico, privilegiado e complexo. No doutorado na USP defendido em 2014, estudou a narrativa construída nos fotolivros Dulce sudor amargo (Fondo de Cultura Economica, 1985) e Silent Book, de Miguel Rio Branco.


Dulce sudor amargo, de Miguel Rio Branco

“Me interessa como o encadeamento da imagem muda a narrativa. Se uma imagem está sendo exposta em um fotolivro, vai ter um discurso sensível específico que é completamente diferente de quando ela é colocada em uma exposição”, explica.

No artigo sobre Claudia Andujar, por exemplo, ela discute o projeto Marcados e as narrativas construídas do mesmo trabalho no fotolivro e em duas diferentes exposições. Nesse caso, ela conta que o livro traz contextualizações sobre a luta ianomâmi, mas as exposições nem sempre trazem esse tipo de informação na sua expografia e desfiliam totalmente as imagens daquele contexto. Em um artigo sobre Vivian Maier, Daniela propõe um exercício parecido quando analisa as narrativas construídas a partir das imagens de Vivian Maier em dois diferentes fotolivros.


Sobremarinhos: capitanias e tirania,
de Gilvan Barreto (Lp press, 2019)

Seu interesse atual está em pesquisar os fotolivros como arte política. Para ela, o procedimento artístico da fotomontagem é uma forma eficiente de trazer à tona vozes dissonantes. “Partilhar com mais gente um contradiscurso é uma grande vantagem do fotolivro, já que permite maior disseminação e acesso do que uma exposição, por exemplo”, observa. Hoje o que não faltam são fotolivros engajados como Sobremarinhos: capitanias e tirania, de Gilvan Barreto (Lp press, 2019), objeto do seu mais recente artigo, e motivos para os ler durante a quarentena. “Sou uma apaixonada pelo objeto-livro, ele me desafia. Se eu já comprava muitos, na pandemia isso ficou pior! A gente entendeu que a materialidade da tela é exaustiva. Não tem nada como sentar para ver um livro e viver outras experiências com o corpo”.

 

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jornalista de arte e fundadora do Bigorna (www.bigornaart.com), plataforma didática de arte contemporânea. Nascida em São Paulo, tem graduação em Jornalismo pelo Mackenzie, e História pela PUC-SP. Vive em Lisboa, onde é mestranda em Culture Studies na Universidade Católica, e colabora com conteúdo sobre artes visuais para veículos e projetos do Brasil e de Portugal. (@bigorna_art).

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