O sistema fotolivro_1

O sistema fotolivro_1

Onde encontrar ajuda temporária neste mundo agitado? […] Quase no topo da minha lista pessoal: fotolivros. Pego um na estante e passo 20 ou 30 minutos com ele, e essa breve imersão repara provisoriamente o mundo.
Teju Cole[1]

O lançamento de IMAGINÁRIA_, primeiro festival brasileiro totalmente dedicado às publicações fotográficas, entre elas o fotolivro, leva-nos a pensar no contexto mais amplo em que este se inscreve. É inegável o aumento do interesse por esse tipo de publicação, a ponto de alguns falarem em um fenômeno fotolivro, título de uma exposição realizada em Barcelona em 2017, e que reuniu alguns dos seus principais protagonistas, entre eles Martin Parr, Horacio Fernández e Moritz Neumüller. Antes disso, o título de uma longa reportagem do Financial Times, de 2015, anunciava a contradição da expansão dos livros fotográficos em pleno boom da virtualidade: Por que os fotolivros estão crescendo na era digital? A pergunta que poderíamos nos fazer é: Por que o fotolivro, tido até então como periférico, tornou-se objeto de interesse de um dos mais influentes jornais de economia do mundo?

O fotolivro, nos últimos vinte anos, passou de uma produção pouco conhecida e desarticulada para a situação atual, em que podemos considerar a existência de um sistema do fotolivro, constituído por uma dimensão econômica, cultural e institucional, e conectado, em alguma medida, em escala global. Como todo sistema, este também é formado por seus agentes, que fazem a engrenagem rodar: autores, editores, distribuidores, crítica especializada e claro o público, em grande parte formado pelos citados anteriormente! Um dos grandes desafios é justamente fazer com que o fotolivro dialogue e atraia o interesse de uma audiência mais ampla, uma vez que, por mais que possamos atestar um crescimento exponencial desse tipo de publicação, ainda se trata evidentemente de um nicho das artes visuais, que por sua vez corresponde a uma ínfima parte do mercado editorial.

Tão importante quanto analisar o fotolivro, enquanto obra, é tentar compreender as partes do sistema que o produz e o faz circular, formado por feiras e festivais, prêmios, publicações especializadas, exposições, colecionismo e pelas indefectíveis listas dos melhores do ano, parâmetro de validação e que pode definir o completo esquecimento ou a consagração de uma publicação. Se alguns desses elementos funcionam de forma independente, eles são, de alguma forma, articulados entre si.

Fotolivro, novos modos de produzir

Em um período de pandemia, quando a circulação da fotografia em exposições e feiras de arte foram duramente afetadas, para não dizer interrompidas, a produção e o fluxo da imagem fotográfica por meio do livro não perdeu em nada sua característica principal, ao contrário. Descobrir uma nova publicação, ou rever uma antiga, foram das poucas experiências de fruição preservada em sua totalidade. Embora ainda modesta em sua escala, em geral fotolivros e fotozines têm tiragem entre 50 e 500 exemplares, nunca se produziu tanto como nos últimos anos.

Hipóteses para isso não faltam, a publicação fotográfica poderia ser esse contraponto necessário à hiperconectividade da vida contemporânea, uma experiência táctil, sensorial, íntima e pessoal. Uma pausa, com outra temporalidade, ao fluxo constante de imagens e informações. Além disso, esse mesmo avanço tecnológico digital está no cerne das novas possibilidades de produção. Nunca foi tão acessível editar e imprimir uma publicação. Programas amigáveis de tratamento e edição de imagens, alinhados à disponibilidade de gráficas digitais com preços razoáveis, têm provocado um boom de publicações independentes. Impacto talvez semelhante ao ocorrido na produção de livros de artistas na década de 1970, com a facilidade de acesso à tecnologia offset e às máquinas copiadoras.

Atualmente, produzir cinquenta exemplares é perfeitamente factível e pode ser um bom começo de uma produção autoral, e tudo isso sem sair de casa! A divulgação e circulação, através das redes sociais, fecham o ciclo da obra que pode ser produzida de forma completamente nova, mas ancorada na tradição da produção editorial. As publicações abaixo, todas impecavelmente produzidas, tiveram tiragem inicial entre 50 e 200. Se o orçamento é mais ambicioso, um financiamento coletivo, suportado pelas redes sociais, pode ser a solução para a produção independente, é o caso, entre outros, das últimas publicações de Felipe Avila e Ricardo Luis Silva.

Reboot, Dan de Carvalho, autoedição, 2019

Coleção das coisas, autoedição, 2019

Autotomy, Adelaide Ivánova, Pingado-Prés, 2014

Tornaras, Rodrigo Pinheiros, autoedição, 2018

Corpo presente, Felipe Avila, Estúdio Margem, 2019

Para levantar as forças, Cecilia Urioste, autoedição, 2018

Líbano, Daniele Queiroz, autoedição, 2019

Com essas ferramentas à mão, a publicação pode ser o espaço perfeito para a livre expressão e experimentação, onde as possibilidades concretas de veicular uma obra são mais acessíveis do que, por exemplo, uma exposição, em que os espaços disponíveis são restritos e as instâncias de validação ainda mais rígidas.

Se no século passado a publicação fotográfica, seja em catálogos de exposição, seja em monografias, era uma espécie de confirmação de uma carreira já estabelecida, o momento atual permite que uma produção autoral seja conhecida, ou em grande parte estruturada, a partir do fotolivro. No Brasil, André Penteado, e sua trilogia recente, e Guilherme Gerais são casos exemplares de autores cuja produção é indissociável das possibilidades abertas pelo fotolivro contemporâneo, e que obtiveram visibilidade, sobretudo, a partir deste suporte.

The best of Mr. Chao: A futurologist collection, Guilherme Gerais, Editora Madalena, 2019

Farroupilha, André Penteado, Editora Madalena, 2020

Podemos pensar também na dupla de artistas, baseados em Londres, Broomberg & Chanarin, autores, entre outros de Holy Bible e War Prime 2. Apoiando-se em imagens reapropriadas, eles questionam a construção de discurso e poder veiculados pela imagem fotográfica. Sucesso de crítica e público, suas edições ganham em seguida o espaço das galerias, sob a forma de instalações. Alec Soth é outro aficionado pelas edições, que, por meio de uma obra pensada sobretudo para o livro, a fez conhecida mundialmente por intermédio deste suporte. Ele criou em 2008 sua própria editora independente, a Little Brown Mushroom (LBM), que publica principalmente fotozines. O fotolivro pode ser também o espaço para um autor experimentar novas formas de visualidades para uma obra já conhecida e estabelecida, é o caso do pequeno livro Mi ojo da Mexicana Graciela Iturbide, em que a autora revisita suas imagens, agora impressas em tinta prateada sobre papel preto, que lhes dão a aparência do seu negativo, reforçando sua carga de mistério em uma nova narrativa.

Sleeping by the Mississippi, Alec Soth, Steidl, 2004.

Holy Bible, Mack books & AMC, 2013

Mi ojo, Graciela Iturbide, Editorial RM, 2016

Podemos, ao contrário, pensar também nos exemplos vindos de outros campos, em geral livros ilustrados por fotografias, cuja função inicial não era de entrar em lista de fotolivros, mas foi exatamente o que acabou acontecendo, por motivos variados: qualidade das fotografias, projeto gráfico inusitado, características únicas ou tudo isso junto. Esses exemplos confirmam a fluidez da categoria do fotolivro, território indiscutivelmente permeável. Esses livros são quase um objet trouvé, é necessário que alguém os encontre em alguma estante, que não as de livros de fotografia, descubra sua potencialidade como veículo da imagem fotográfica e os insira no circuito dos fotolivros. Nos exemplos abaixo, temos um manual de como fazer pão, um compêndio de estudo científico de nuvens, um livro encontrado na seção “turismo” de uma livraria e um maravilhoso almanaque de Julio Cortázar. Para os que pretendem colocar os fotolivros em uma categoria hermética, nunca é demais lembrar que American photographs, de Walker Evans, foi concebido como um catálogo de exposição.

The book of Bread, 1903

Wolkenstudien/Cloud studies/Etudes des nuages, Hemmut Völter, Spector Books, 2011

Souvenirs de Paris, Valérie Weill & Philippe Chancel, Thames & Hudson, 2004

O Ultimo Round, Julio Cortázar, Editorial Siglo XXI, 1969

American photographs, Walker Evans, MoMA/NY, 1938

Esses exemplos sugerem que a categoria do fotolivro é bastante ampla e, pelo fato de ser uma área recente de pesquisa, fechá-la em bordas muito precisas pode ser o caminho mais curto para limitar tanto seu estudo quanto seu alcance no universo visual contemporâneo. Como sugerem P. Di Bello e S. Zamir[3], incluir publicações limítrofes ao fotolivro colocam em foco a maneira pela qual tentativas de delimitar definições muito estreitas podem excluir as possibilidades de uma nova história antes mesmo dela ter sido escrita. Se, em se tratando de fotolivros, as categorizações são problemáticas, essa diversidade é o principal fator que tem transformado o sistema de produção e circulação do livro fotográfico em um modelo muito mais fragmentado e fluido, e portanto inclusivo, como veremos a seguir.


[1] COLE, Teju, Smell the ink and drift away: why I find solace in photobooks, em: The Guardian, 24/02/2020:
https://www.theguardian.com/artanddesign/2020/feb/24/teju-cole-photobooks-fernweh, consultado em 03/02/2021 (minha tradução)

[2] Why photobooks are booming in a digital age, reportagem de Liz Jobey, Financial Times, 27/02/2015,
https://www.ft.com/content/be1fd978-bceb-11e4-a917-00144feab7de, consultado em 03/02/2021 (minha tradução)

[3] BELLO, Patrizia Di; ZAMIR, Shamoon, The Photobook: From Talbot to Ruscha and Beyond, I.B.Tauris & Co Ltd, New York, organizado por BELLO,Patrizia Di; WILSON, Colette; ZAMIR, Shamoon, 2012, p.4.


Crédito das fotos
The book of Bread, 1903 – @incunabula
Sleeping by the Mississippi – Steidl
Tornaras e Corpo presente – Lovely House/José Fujocka
American photographs – MoMA/NY
Demais imagens – Eder Ribeiro
Written by -

curador e editor. Mestre em Arquitetura (École National Superièure d’Architecture Paris Malaquais) e Arte Contemporânea/Fotografia (Université Paris 8). Fundou a alter edições, editora independente especializada em livros fotográficos. Atualmente coordena o Grupo de Estudos em Narrativas Visuais na Casa Contemporânea (São Paulo).

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